quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O canto da sereia


* Nivaldo de Carvalho Júnior


Todos nós, policiais, sabemos que a profissão que abraçamos é bastante complexa. Também estamos cientes que nossas atitudes em serviço, na maioria das vezes, permeiam o limiar entre o certo e o errado; entre o lícito e o ilícito; entre o justo e o injusto. Este texto visa chamar a atenção dos nobres colegas para uma congruência de fatores que nos leva a tender perigosamente para o lado nebuloso do aludido limiar.

Antes, porém, faço uma breve digressão para citar a passagem da mitologia grega conhecida como o “O CANTO DA SEREIA”.

“Uma ilha do Mediterrâneo era habitada por diversas sereias, cujos cantos atraíam os navegantes de forma irresistível. Ao aproximarem-se da ilha, seus barcos batiam nos recifes e naufragavam. As sereias, em seguida, devoravam suas vítimas. O herói Ulisses, desenvolveu uma solução simples porém eficaz: ordenou que sua tripulação tampasse os ouvidos com cera e amarrassem-no ao mastro, não podendo soltá-lo de forma alguma, ainda que ele gritasse para tanto. A idéia de Ulisses partiu do reconhecimento de sua própria fraqueza. Ele sabia que no impulso do momento, poderia ser abduzido pelo encanto das sereias. Sua racionalidade foi capaz de pesar isso antes na balança das preferências temporais, e isso salvou sua tripulação do fatal canto da sereia”.

Esse conto já foi utilizado para ilustrar uma vídeo-aula do competente professor Ricardo Balestreri, o qual compartilha os seus conhecimentos com a família policial, durante os cursos da SENASP.

Pretendo apenas estender a abrangência dessa história mitológica, quando comparada metaforicamente com a segurança pública. Na minha modesta percepção, estamos expostos a três formas de “canto da sereia” durante a atividade policial.

A primeira delas é aquela proveniente da sociedade. É bastante comum ouvirmos apelos emocionados das pessoas, aduzindo que temos que “acabar com a bandidagem a qualquer custo”; que “bandido tem que apanhar da polícia para criar vergonha na cara”; que “menor infrator tem que morrer porque não existe cadeia pra ele no Brasil”. Cuidado companheiros! Aqui está o mais perigoso “canto da sereia” contemporâneo. Basta que o cidadão infrator seja um parente ou amigo próximo, para aquelas pessoas mudarem completamente de idéia e exigirem a “cabeça” do policial que maltratou o ente querido delas. Lembrem-se: A maioria dos infratores tem família ou amigos, sendo que estes sempre os defenderão.





Não poderia esquecer o “canto da sereia” que ecoa dentro das instituições policiais. Hoje em dia, a palavra de ordem é estatística. Este recurso é importante para a definição de estratégias policiais, todavia não pode ser instrumento para pressionar os agentes públicos a atingirem metas que não condizem com a realidade social brasileira. Não é prudente exigir que os policiais alcancem índices europeus de redução de crimes, enquanto temos investimentos pífios na formação policial, na remuneração dos servidores e na disponibilidade de recursos logísticos. Essa cobrança excessiva baseada apenas em “números” é outro fator que entrega nossos colegas à faminta mulher-peixe dos tempos modernos. Sabe-se que muitos policiais já enveredaram nos caminhos tortuosos da ilegalidade para apreender uma arma de fogo ou prender um “criminoso monitorado”. Não custa destacar: não é a pessoa que impõe a meta que responderá pelos atos judiciais, mas sim aqueles que executaram a tarefa.
Também devo mencionar o mais intrigante “canto da sereia” que afaga nossos ouvidos teimosos. Refiro-me à pressão oriunda de nós mesmos. Pergunto-me incessantemente: porque somos tão adeptos a figura heróico-vilã do Capitão Nascimento? Porque ainda consideramos como bons policiais apenas aqueles que pegam o “vagabundo” pela unha; que prendem e apreendem ao arrepio da lei? Porque não valorizamos os policiais que privilegiam o profissionalismo em detrimento desse pseudo heroísmo? Porque cometemos tantos erros em serviço e depois atribuímos as conseqüências aos nossos comandantes que não “seguraram a bronca”? Não ouso responder às ditas indagações, pois também sou refém deste dissimulado “canto da sereia” que habita o seio de nossas hostes.
Nessa trilha de idéias, a única certeza é que não há mais espaços para policiais amadores na sociedade atual. No Estado Democrático de Direito, o profissionalismo deve nortear toda atividade atinente à segurança pública.

Assim, prezados amigos, devemos agir como Ulisses, assumindo nossas fraquezas e procurando sempre tapar os ouvidos dos nossos colegas quando depararmos com o menor sinal do “canto da sereia” - Isso se faz com bastante conversa em equipe para fomentar o discernimento de cada policial. Além disso, agarremo-nos ao mastro maior (Constituição Federal) do nosso navio (Estado de Direito), atuando sempre com obediência aos parâmetros normativos.

Rememoremos: para atender ao clamor popular, cumprir as metas estabelecidas pelas instituições ou fazer aquilo que gostamos (prender criminosos) é imprescindível que todas essas ações estejam em consonância com a lei. Desta forma, passaremos incólumes pelo perigoso “canto da sereia” que tem devorado a vida de diversos companheiros de batalha.

* Autor: Nivaldo de Carvalho Júnior, 2º Sgt da PMMG e bacharelando em Direito pelo Centro Universitário de Sete Lagoas.

postado em: http://www.universopolicial.com/2011/01/o-canto-da-sereia.html
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